"Há dores que não há nem forma de senti-las, há dores que só doem depois da cicatriz, e há vezes que essas cicatrizes não existem, são fictícias apenas, há dores que não se sabe qual reação deve-se ter primeiro, há dores que passam, há dores que oscilam entre a ida e a volta, há dores que permanecem, há dores que nos acompanham, e que se depois de um tempo resolvem se mostrar, há dores que só fingem ir, e que quando menos se espera nos pegam de surpresa. Há uma dor, unicamente uma, que é capaz de englobar todas as citadas, uma dor que não há como evitar, uma dor causada, por um adeus não dito, um adeus que ninguém deu a você, e que nem você deu a tal pessoa, a pessoa simplesmente se foi, sem se despedir, e sem direito a volta."
Não havia ninguém que pudesse acompanhá-lo nesse dia, não havia nenhum tio, não havia nenhum primo, como já disse não havia ninguém. Não me dispus para ir vê-lo, nem para passar uma hora que fosse, mas eu era a única opção que todos tinham, me troquei, pondo qualquer roupa, como quem vai em algum lugar por obrigação, com um tanto exacerbado de desgosto. Cheguei cumprimentei minha tia que já estava encerrando 'seu turno do dia', assim por dizer. Olhei para ele, já parecia um cadáver, respirava, se alimentava, vivia apenas por máquinas há um mês mais ou menos, como diziam? Ah, sim, coma induzido.
Ao lado dele havia um rapaz, novo, a qual nem me interessei saber o nome, motivo que estava lá, nem quanto tempo estava naquele leito, mas ele conversava comigo, e eu sem lhe dar uma gota se quer de atenção. Só me lembro de que ele disse que já estava acompanhando meu avô naquele quarto, e que o estado do meu avô havia piorado ao amanhecer desse dia.
Tentei por vezes me conectar na Wi-Fi, sem sucesso algum, tentei procurar alguém disposto a trocar algumas mensagens, a fim de quebrar aquela monotonia que me irritava, e acabar com o tédio e com aquele clima que hospitais me causavam, repugno. Achei apenas um número disponível, mas por estar em hospital, via meu sinal sendo cortado por vezes, aquilo parecia mexer com meu sistema nervoso, minha impaciência já atingira o ápice. Comecei andar de um lado para o outro, saindo da sala toda hora, à espera de que uma visita chegasse para que eu me libertasse pelo menos por minutos daquela responsabilidade de olhar um corpo que não se mexia, nem ao menos o tórax via inflar ao respirar.
Parecia que todos combinaram que ninguém o visitaria naquele dia.
Passou mais algumas horas, duas, talvez três horas. Eu ensaiava alguns cochilos naquele quarto, que apesar de haver dois pacientes, ainda me parecia muito vazia. Uma certa simulação de tempestade ousou aparecer, uma chuva forte, um vento frio, que talvez fossem os causadores de alguns arrepios. Coloquei a mão no corpo dele, aparentava estar com febre, durante as duas próximas horas, foram utilizadas para chamar enfermeiras para medicá-lo, mas pareciam que todas já haviam desistido de que havia vida naquele corpo. Nenhuma o medicou, ou pelo menos se interessou a ver se estava tudo certo com os medicamentos, máquinas..
Depois de mais de seis horas sentindo a verdadeira agonia de um quarto de hospital, me liberaram, chegou, acho que outra tia e meu pai também havia chegado.
Até chegar na saída, creio ter contado uns 30 passos, dei de cara com a recepção e com um ar que parecia menos denso, me sentei. Meu pai veio logo atrás de mim, mas apenas dizendo que já não houve mais sinais vitais depois que sai do quarto.
Sabe a dor inicial que me tratava, pois sim, ela só se agrava mais quando percebe-se que a pessoa se foi, e que não se deu valor nenhum à ela, e que ela era fundamental em sua existência, e agora? Ela se foi, e você só se deu conta que ela existia agora, você só foi perceber que ela te amava agora, você só viu os sacrifícios que ela fez por ti agora, e o que você vai fazer? Vai tentar recompensá-la?
A história é tipo a mesma de fim de namoro, é o caso de se dar ao valor depois que se perde, mas esse perder ele parece mais real, ele é um pouco mais grave, é bem devastador assim por si só.
E agora, vai dar uma ser sensível? Infantilidade tem limite, já é bem escancarado de que nada adianta se mostrar arrependido por ser um completo idiota, e se arrepender não vai fazer suas falhas sumirem, e nem fará de ti uma pessoa melhor, fazer as coisas certas postumamente é o ato mais inútil existente.
Ele me aguardava acordar para que fosse o primeiro a me dar bom dia, era o primeiro a me chamar para almoçar, sempre oferecia companhia quando ia à escola, as memórias históricas de Mogi Guaçu pareciam estar depositadas em sua mente, e ele detalhadamente me explicava como foi construído cada partezinha do meu bairro, dizendo nome dos moradores antigos até os atuais, ele sabia do meu vício em balas, e sempre tinha uns 3 tipos de bala no bolso para me oferecer, sem ao menos pedir, me afinava o violão, e me contava o que se passava na televisão, cada 'encrenca' das novelas - como ele chamava as desavenças das personagens. Vi sua mente ser degradada aos poucos, vi ela ser corroída pelo Alzhaimer, fui vendo ele deixando de existir bem devagar.
Ando sozinha agora, vou a escola andando sozinha, não sei nem se quer o nome das novelas que se passam, não sei mais o que passou no jornal, nem quem o apresenta, não toco mais no violão, meu primeiro bom dia, quando ele existe, vem de algum professor, ou de alguma rede social, as balas agora sou eu mesma que compro, e só de um tipo, não posso mais escolher em três sabores/tipos.
Tive mais de seis horas para me desculpar dos atos não pensados, das palavras ditas sem pensar, dos tons pejorativos que usei, da ausência que dispus a ele, estive até o último suspiro dele para que pudesse dizer que o amava, que sentia falta nos últimos meses que ele se encontrava internado, mas um aparelho celular que estava em minhas mãos não permitiu que eu pudesse amá-lo pela última vez em vida.
25/01 4h48